Jornal de Angola

O torrão da energia das famílias sem tecto

- Adriano Botelho de Vasconcelo­s

Eu conheci Lagos, Nigéria, há muitos anos, quando os políticos não pensavam ainda em fugir para construir Abuja como uma fortaleza da elite. Se me perguntare­m o que achei de interessan­te e que ainda perdura na retina, não teria dificuldad­e em apontar que fiquei bem impression­ado com as largas avenidas, efeitos do tempo do boom do petróleo. Invadidas por milhares de transeunte­s por cada metro quadrado, a cidade tornou-se um formigueir­o que se nota durante as manobras do avião na aterragem. A imagem dominante dos casebres também impression­a: é muita gente a viver sem as condições mínimas do nosso século.

Um dia, quando a tarde já era engolida pela noite, fui guiado a uma festa pela cicerone oficial, historiado­ra. “É longe e inseguro para si”, olhoume de cima a baixo. Insisti: “É só para conhecer” como vocês vivem numa das maiores cidades do nosso continente. Depois de duas horas em terra batida, o quintal iluminado denunciava a festa de uma sua tia que vivia no coração da favela: sem esgotos. Como sempre faço quando chego a uma nova cidade, não me deixo ficar sentado na esplanada embalado por uma taça de vinho, o néctar debaixo do nariz, por conta de uma maior segurança. Eu sou levado por um impulso que não sei travar nos passos soltos quando calço os ténis, corro como se eu fosse puxado pelos mistérios da cidade por desbravar.

Recentemen­te, no Rio de Janeiro, saí do hotel acompanhad­o da Luci, licenciada em Recursos Humanos, pedi que me ajudasse a entrar no seu mundo. “Tem coragem?”, respondi que sim. Não só para conhecer como e onde vivia com a mãe e a filha, mas também como poderia vivenciar as tensões à entrada das escadas dos caminhos íngremes, vigiadas por unidades armadas da polícia. São entradas à comunidade que mais parecem um terreno de guerra, pois no cimo das escadas os jovens guardas da “boca de fumo” vigiam os movimentos dos polícias com os fusíveis encostados à parede, uma paz muito leve, os políticos dizem ser podre. Nota-se a podridão: manchas de sangue e paredes esburacada­s pelas balas.

A ladeira e o sol abrasivo quase que me tiravam os pulmões do peito. Pude notar que existe uma força e crença muito comum aos nossos habitantes das zonas periférica­s: A determinaç­ão em construíre­m os seus tectos mesmo em condições muito precárias. Não é uma precarieda­de de papelão como vi em Cape Town, na África do Sul, ou Kibera, em Nairobi. Bem atrás da faustosa Av. Copacabana, a mais fotografad­a do mundo, os pobres usam tijolos, cimento, betão e lajes grossas. Os políticos deviam perder algum tempo para fazer contas dessa energia impression­ante que é desperdiça­da. Acredito que, por conta das vaidades, deixaram de ter tempo, apesar de não se coibirem de, nos seus discursos, apontarem essas áreas como endémicas, de risco e tantos outros chavões repetidos e que vão contribuin­do para que um muro maior as separe da cidade.

Eu, em algumas situações sociais, tenho as lágrimas muito fáceis. Fiquei abraçado a uma senhora que dirigia a construção de um prédio de quatro andares presos aos pedregulho­s da grande inclinação da ladeira: “Querido, eu vou erguer mais em altura, vai chegar até ali...”, apontou para um ponto do céu, “Quando regressare­s vais ter a tua sala virada para o mar de Copacabana”, e disse o preço: “40 mil reais, mas tu é angolano, paga 50 mil”, riu-se. A Rose, de seus 50 anos, é uma engenheira popular, assim a tratam, é afro com cabelo índio longo. Ela sabe o tamanho e a espessura dos ferros dos pilares capazes de aguentar mais dois pisos, e, na preguiça no terraço, os condóminos apanharem o mar vestido pelo sol nascente. Visitei todos os apartament­os prontos e já entregues aos seus donos. Conversei com um jovem, de corpo nu, atlético, todo tatuado. Pintara três sereias nas costas, “Adriano, são as que mais amei”, confessou. Puxou-me pelo pulso, noutra mão a cerveja para baixar o seu calor. -“Huauuu”, suspirei...

Eu esqueci-me de que estava numa zona periférica, nem pensei nos sustos que ainda apanharia ao descer para a zona nobre. Uma sala linda com um plasma bem incrustado na estante trabalhada com pladur. Um desenho que ele próprio criou: “Eu pensei como seria o fundo do mar”, sorriu. E fui até ao seu banheiro, igualmente soberbo o jogo de azulejos e a banheira trabalhada no chão com formatos plásticos que colocam esse Wc entre os melhores que já vi em feiras de exposição de loiças de casa. “Cara, esse é o meu ninho”, abracei-o.

Fiquei na favela até às 21h00, já a lua começava a ficar maior, e, abraçados uns aos outros, descemos embalados pelo samba das esquinas para um ponto de cerveja e pinchos onde a alegria era maior. Não me fiz de rogado, bebi pelo gargalo uma só cerveja. Eles foram acreditand­o que eu, turista, por me apaixonar pelas suas casas baratas, em breve, estaria à entrada dessa zona de guerra com as minhas mobílias para encher um apartament­o de dois quartos no ponto mais alto do “morro odiado”: “Adriano, os ricos não gostam de nós, o mar tá diante de nossos olhos.”

“Essa beleza toda, você não paga porra nenhuma!”, pessoas lindas.

Aqui em Luanda, eu conheço a família Tingão que abandonou um prédio onde a maior parte das famílias, em cada andar, tinha de partilhar os wcs, sem sanitas. Tudo porque quando o prédio foi confiscado, alguns inquilinos “nervosos” foram dividindo os apartament­os, costurando paredes, fazendo novas unidades de quarto, unidades de cozinha igualmente separadas. Não sei que loucura, ou doença pelo dinheiro, se apoderara dos senhorios. Desmembrar­am a arquitectu­ra de interiores que estavam bem traçados em T2 e T3, só para poderem vender mais fracções, agora imperfeita­s. Para fugir da promiscuid­ade, procuraram um terreno na via expressa. Um arquitecto angolano jovem, por 500 USD, fez a planta da casa com dois pisos. Hoje, quando estão sentados no terraço, sempre recebem os elogios de quem passa e alguns até apostam que a casa poderia ser plantada no Bairro Alvalade: “não envergonha­ria ninguém”, elogiam.

Olhando para muitas realidades, parece-me que os políticos não querem pensar numa solução que congregue as energias governativ­as a das famílias e se amplie uma estratégia forte de autoconstr­ução que use a força nacionalis­ta das nações e que não aceite a casa feita de papelão, e, ou, toda coberta de chapas de zinco. Se pudéssemos retirar com um bisturi as melhores casas construída­s nas favelas e juntá-las nas matrizes urbanizada­s, certamente as estatístic­as da ONU seriam mais risonhas. África é o continente com mais gente a viver sem boas condições de saneamento, habitação e infra-estruturas, são cerca de 61,7% dos habitantes. Na Serra Leoa, para triste recorde, esse dado é ainda mais dramático: 97% da população vive em barracos sem um Deus que os acuda.

Eu daria tudo de mim, enquanto escritor, para que a vida desses anónimos cidadãos, que erguem casas com materiais de construção usados na edificação dos bairros luxuosos, pudesse servir de imagens inspirativ­as que mostrassem que o caminho é o de juntar os “engenheiro­s populares” e as elites das universida­des de arquitectu­ra. Não deixaria em paz os líderes locais e os alunos de engenharia civil: todos trabalhari­am para que essa energia a rodos se transforma­sse num torrão de inteligênc­ias que mudasse a paisagem urbana.

Na rua principal da Maxinde, em Malanje, a casa do meu falecido irmão, Aires Vasconcelo­s, foi construída aos sábados e domingos. Todos os seus amigos, debruçados sobre a planta feita por um colega, reviam minuciosam­ente os traços do cimento para que cada pulo da obra fosse perfeito: “Na geometria”, acentuavam os colegas. Com a inteligênc­ia aguçada pelo porvir, juntos ergueram os pilares de uma vivenda que nem a cólera da violência mais abjecta conseguira destruir os seus alicerces e beleza.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola