O torrão da energia das famílias sem tecto
Eu conheci Lagos, Nigéria, há muitos anos, quando os políticos não pensavam ainda em fugir para construir Abuja como uma fortaleza da elite. Se me perguntarem o que achei de interessante e que ainda perdura na retina, não teria dificuldade em apontar que fiquei bem impressionado com as largas avenidas, efeitos do tempo do boom do petróleo. Invadidas por milhares de transeuntes por cada metro quadrado, a cidade tornou-se um formigueiro que se nota durante as manobras do avião na aterragem. A imagem dominante dos casebres também impressiona: é muita gente a viver sem as condições mínimas do nosso século.
Um dia, quando a tarde já era engolida pela noite, fui guiado a uma festa pela cicerone oficial, historiadora. “É longe e inseguro para si”, olhoume de cima a baixo. Insisti: “É só para conhecer” como vocês vivem numa das maiores cidades do nosso continente. Depois de duas horas em terra batida, o quintal iluminado denunciava a festa de uma sua tia que vivia no coração da favela: sem esgotos. Como sempre faço quando chego a uma nova cidade, não me deixo ficar sentado na esplanada embalado por uma taça de vinho, o néctar debaixo do nariz, por conta de uma maior segurança. Eu sou levado por um impulso que não sei travar nos passos soltos quando calço os ténis, corro como se eu fosse puxado pelos mistérios da cidade por desbravar.
Recentemente, no Rio de Janeiro, saí do hotel acompanhado da Luci, licenciada em Recursos Humanos, pedi que me ajudasse a entrar no seu mundo. “Tem coragem?”, respondi que sim. Não só para conhecer como e onde vivia com a mãe e a filha, mas também como poderia vivenciar as tensões à entrada das escadas dos caminhos íngremes, vigiadas por unidades armadas da polícia. São entradas à comunidade que mais parecem um terreno de guerra, pois no cimo das escadas os jovens guardas da “boca de fumo” vigiam os movimentos dos polícias com os fusíveis encostados à parede, uma paz muito leve, os políticos dizem ser podre. Nota-se a podridão: manchas de sangue e paredes esburacadas pelas balas.
A ladeira e o sol abrasivo quase que me tiravam os pulmões do peito. Pude notar que existe uma força e crença muito comum aos nossos habitantes das zonas periféricas: A determinação em construírem os seus tectos mesmo em condições muito precárias. Não é uma precariedade de papelão como vi em Cape Town, na África do Sul, ou Kibera, em Nairobi. Bem atrás da faustosa Av. Copacabana, a mais fotografada do mundo, os pobres usam tijolos, cimento, betão e lajes grossas. Os políticos deviam perder algum tempo para fazer contas dessa energia impressionante que é desperdiçada. Acredito que, por conta das vaidades, deixaram de ter tempo, apesar de não se coibirem de, nos seus discursos, apontarem essas áreas como endémicas, de risco e tantos outros chavões repetidos e que vão contribuindo para que um muro maior as separe da cidade.
Eu, em algumas situações sociais, tenho as lágrimas muito fáceis. Fiquei abraçado a uma senhora que dirigia a construção de um prédio de quatro andares presos aos pedregulhos da grande inclinação da ladeira: “Querido, eu vou erguer mais em altura, vai chegar até ali...”, apontou para um ponto do céu, “Quando regressares vais ter a tua sala virada para o mar de Copacabana”, e disse o preço: “40 mil reais, mas tu é angolano, paga 50 mil”, riu-se. A Rose, de seus 50 anos, é uma engenheira popular, assim a tratam, é afro com cabelo índio longo. Ela sabe o tamanho e a espessura dos ferros dos pilares capazes de aguentar mais dois pisos, e, na preguiça no terraço, os condóminos apanharem o mar vestido pelo sol nascente. Visitei todos os apartamentos prontos e já entregues aos seus donos. Conversei com um jovem, de corpo nu, atlético, todo tatuado. Pintara três sereias nas costas, “Adriano, são as que mais amei”, confessou. Puxou-me pelo pulso, noutra mão a cerveja para baixar o seu calor. -“Huauuu”, suspirei...
Eu esqueci-me de que estava numa zona periférica, nem pensei nos sustos que ainda apanharia ao descer para a zona nobre. Uma sala linda com um plasma bem incrustado na estante trabalhada com pladur. Um desenho que ele próprio criou: “Eu pensei como seria o fundo do mar”, sorriu. E fui até ao seu banheiro, igualmente soberbo o jogo de azulejos e a banheira trabalhada no chão com formatos plásticos que colocam esse Wc entre os melhores que já vi em feiras de exposição de loiças de casa. “Cara, esse é o meu ninho”, abracei-o.
Fiquei na favela até às 21h00, já a lua começava a ficar maior, e, abraçados uns aos outros, descemos embalados pelo samba das esquinas para um ponto de cerveja e pinchos onde a alegria era maior. Não me fiz de rogado, bebi pelo gargalo uma só cerveja. Eles foram acreditando que eu, turista, por me apaixonar pelas suas casas baratas, em breve, estaria à entrada dessa zona de guerra com as minhas mobílias para encher um apartamento de dois quartos no ponto mais alto do “morro odiado”: “Adriano, os ricos não gostam de nós, o mar tá diante de nossos olhos.”
“Essa beleza toda, você não paga porra nenhuma!”, pessoas lindas.
Aqui em Luanda, eu conheço a família Tingão que abandonou um prédio onde a maior parte das famílias, em cada andar, tinha de partilhar os wcs, sem sanitas. Tudo porque quando o prédio foi confiscado, alguns inquilinos “nervosos” foram dividindo os apartamentos, costurando paredes, fazendo novas unidades de quarto, unidades de cozinha igualmente separadas. Não sei que loucura, ou doença pelo dinheiro, se apoderara dos senhorios. Desmembraram a arquitectura de interiores que estavam bem traçados em T2 e T3, só para poderem vender mais fracções, agora imperfeitas. Para fugir da promiscuidade, procuraram um terreno na via expressa. Um arquitecto angolano jovem, por 500 USD, fez a planta da casa com dois pisos. Hoje, quando estão sentados no terraço, sempre recebem os elogios de quem passa e alguns até apostam que a casa poderia ser plantada no Bairro Alvalade: “não envergonharia ninguém”, elogiam.
Olhando para muitas realidades, parece-me que os políticos não querem pensar numa solução que congregue as energias governativas a das famílias e se amplie uma estratégia forte de autoconstrução que use a força nacionalista das nações e que não aceite a casa feita de papelão, e, ou, toda coberta de chapas de zinco. Se pudéssemos retirar com um bisturi as melhores casas construídas nas favelas e juntá-las nas matrizes urbanizadas, certamente as estatísticas da ONU seriam mais risonhas. África é o continente com mais gente a viver sem boas condições de saneamento, habitação e infra-estruturas, são cerca de 61,7% dos habitantes. Na Serra Leoa, para triste recorde, esse dado é ainda mais dramático: 97% da população vive em barracos sem um Deus que os acuda.
Eu daria tudo de mim, enquanto escritor, para que a vida desses anónimos cidadãos, que erguem casas com materiais de construção usados na edificação dos bairros luxuosos, pudesse servir de imagens inspirativas que mostrassem que o caminho é o de juntar os “engenheiros populares” e as elites das universidades de arquitectura. Não deixaria em paz os líderes locais e os alunos de engenharia civil: todos trabalhariam para que essa energia a rodos se transformasse num torrão de inteligências que mudasse a paisagem urbana.
Na rua principal da Maxinde, em Malanje, a casa do meu falecido irmão, Aires Vasconcelos, foi construída aos sábados e domingos. Todos os seus amigos, debruçados sobre a planta feita por um colega, reviam minuciosamente os traços do cimento para que cada pulo da obra fosse perfeito: “Na geometria”, acentuavam os colegas. Com a inteligência aguçada pelo porvir, juntos ergueram os pilares de uma vivenda que nem a cólera da violência mais abjecta conseguira destruir os seus alicerces e beleza.