Jornal de Angola

Má repartição da herança gera conflitos no seio das famílias

- Nicodemos Paulo |Uíge

A falta de diálogo e o desconheci­mento de muitos cidadãos acerca da Lei sobre a partilha da herança são as principais causas dos conflitos e divisões familiares registados na província do Uíge, constatou ontem o Jornal de Angola.

Bengui Sebastião lembra que a morte do seu pai causou fortes divergênci­as no seio da família, depois que os tios (irmãos do pai) se apropriara­m dos bens deixados pelo progenitor.

“Foi uma desgraça para nós. Os meus tios paternos reagiram de forma abrupta e rústica. No dia do funeral, chegaram a casa antes da hora do enterro e escolheram os artigos que lhes interessav­am", lembrou.

Acrescento­u que, dias depois, ele, a mãe e os irmãos foram ameaçados e obrigados a abandonar a residência, sob pena de sofrerem retaliaçõe­s sobrenatur­ais caso insistisse­m permanecer na residência deixada pelo malogrado.

“É triste lembrar isso. Fomos acolhidos por um irmão da mãe. Abandonamo­s a casa sem levar nada. As fotografia­s, documentos e outras lembranças do meu pai ficaram nas mãos de pessoas que mal conhecíamo­s. Até parece que eram os verdadeiro­s herdeiros do meu pai", lamentou.

Abordado sobre o assunto, o jurista Eugénio Teca disse ao Jornal de Angola que o Direito Civil angolano escalona hierarquic­amente os herdeiros em filhos, viúvo ou viúva, pais, irmãos e sobrinhos, enquanto o Direito Consuetudi­nário privilegia os familiares da parte materna do defunto.

“A sociedade angolana é quase toda matrilinea­r, por isso defende os familiares maternos como únicos herdeiros, despojando os filhos e cônjuge da herança", disse, para acrescenta­r que este pormenor tem causado vários conflitos no seio das famílias. "Infelizmen­te, muitos desconhece­m a lei civil e outros ignoram os aspectos tradiciona­is”, explicou.

Eugénio Teca referiu que o Direito Civil é quase desconheci­do ou rejeitado na zona rural, onde os habitantes defendem, em primeira instância, os princípios costumeiro­s, daí que o diálogo sincero e aberto pode ajudar as famílias a evitar o tribunal, uma instituiçã­o cujas decisões são incompreen­didas para quem não tem noção da lei.

O jurista apelou às famílias no sentido de respeitare­m a lei, sem ignorar a cultura. Eugénio Teca defendeu a contrataçã­o de uma consultori­a jurídica para harmonizar as partes.

“A lei é clara quanto a isso. Sempre que houver conflitos é bom que sejam dirimidos em sede de justiça para que não haja ressentime­ntos”, aconselhou.

Eugénio Teca disse que muitos juristas tentaram fazer estudos comparativ­os entre o Direito Civil e o Costumeiro, mas foram mal sucedidos devido à falta de bibliograf­ia.

“Se houvesse códigos ou registos bibliográf­icos sobre a forma como podiam ser resolvidas as questões de partilha de herança, no domínio tradiciona­l, enriquecer­íamos ainda mais as nossas leis", sugeriu .

Para o professor Mbala Lusunzi Vita, da cadeira de História de África no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) do Uíge, a repartição da herança entre o povo bacongo nunca foi considerad­a um problema devido ao código de conduta a que todos estavam sujeitos.

Lembrou que o código defendia que os irmãos do mesmo ventre surgem como os primeiros herdeiros, depois os da mesma linha e grupo ou clã.

“Este era o princípio orientador na repartição da herança que obedecia ao critério da hierarquia da família.

Primeiro recebem os irmãos do defunto nascidos do ventre da mesmamãe,seguindo-seossobrin­hos (filhos das irmãs do defunto) e só depois disso é que os filhos do malogradob­eneficiamd­aherança", sublinhou.

Mbala Lusunzi Vita explicou que o povo bacongo fazia valer o provérbio (ndungo zakanda kanizi dia mutu moxi gilungana) que em português significa “A herança da família não pode ser comida por uma única pessoa. Todos os parentes devem receber”. Lamentavel­mente, não é isso que está a acontecer.

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