Má repartição da herança gera conflitos no seio das famílias
A falta de diálogo e o desconhecimento de muitos cidadãos acerca da Lei sobre a partilha da herança são as principais causas dos conflitos e divisões familiares registados na província do Uíge, constatou ontem o Jornal de Angola.
Bengui Sebastião lembra que a morte do seu pai causou fortes divergências no seio da família, depois que os tios (irmãos do pai) se apropriaram dos bens deixados pelo progenitor.
“Foi uma desgraça para nós. Os meus tios paternos reagiram de forma abrupta e rústica. No dia do funeral, chegaram a casa antes da hora do enterro e escolheram os artigos que lhes interessavam", lembrou.
Acrescentou que, dias depois, ele, a mãe e os irmãos foram ameaçados e obrigados a abandonar a residência, sob pena de sofrerem retaliações sobrenaturais caso insistissem permanecer na residência deixada pelo malogrado.
“É triste lembrar isso. Fomos acolhidos por um irmão da mãe. Abandonamos a casa sem levar nada. As fotografias, documentos e outras lembranças do meu pai ficaram nas mãos de pessoas que mal conhecíamos. Até parece que eram os verdadeiros herdeiros do meu pai", lamentou.
Abordado sobre o assunto, o jurista Eugénio Teca disse ao Jornal de Angola que o Direito Civil angolano escalona hierarquicamente os herdeiros em filhos, viúvo ou viúva, pais, irmãos e sobrinhos, enquanto o Direito Consuetudinário privilegia os familiares da parte materna do defunto.
“A sociedade angolana é quase toda matrilinear, por isso defende os familiares maternos como únicos herdeiros, despojando os filhos e cônjuge da herança", disse, para acrescentar que este pormenor tem causado vários conflitos no seio das famílias. "Infelizmente, muitos desconhecem a lei civil e outros ignoram os aspectos tradicionais”, explicou.
Eugénio Teca referiu que o Direito Civil é quase desconhecido ou rejeitado na zona rural, onde os habitantes defendem, em primeira instância, os princípios costumeiros, daí que o diálogo sincero e aberto pode ajudar as famílias a evitar o tribunal, uma instituição cujas decisões são incompreendidas para quem não tem noção da lei.
O jurista apelou às famílias no sentido de respeitarem a lei, sem ignorar a cultura. Eugénio Teca defendeu a contratação de uma consultoria jurídica para harmonizar as partes.
“A lei é clara quanto a isso. Sempre que houver conflitos é bom que sejam dirimidos em sede de justiça para que não haja ressentimentos”, aconselhou.
Eugénio Teca disse que muitos juristas tentaram fazer estudos comparativos entre o Direito Civil e o Costumeiro, mas foram mal sucedidos devido à falta de bibliografia.
“Se houvesse códigos ou registos bibliográficos sobre a forma como podiam ser resolvidas as questões de partilha de herança, no domínio tradicional, enriqueceríamos ainda mais as nossas leis", sugeriu .
Para o professor Mbala Lusunzi Vita, da cadeira de História de África no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) do Uíge, a repartição da herança entre o povo bacongo nunca foi considerada um problema devido ao código de conduta a que todos estavam sujeitos.
Lembrou que o código defendia que os irmãos do mesmo ventre surgem como os primeiros herdeiros, depois os da mesma linha e grupo ou clã.
“Este era o princípio orientador na repartição da herança que obedecia ao critério da hierarquia da família.
Primeiro recebem os irmãos do defunto nascidos do ventre da mesmamãe,seguindo-seossobrinhos (filhos das irmãs do defunto) e só depois disso é que os filhos do malogradobeneficiamdaherança", sublinhou.
Mbala Lusunzi Vita explicou que o povo bacongo fazia valer o provérbio (ndungo zakanda kanizi dia mutu moxi gilungana) que em português significa “A herança da família não pode ser comida por uma única pessoa. Todos os parentes devem receber”. Lamentavelmente, não é isso que está a acontecer.