Ainda o 4 de Abril
Os angolanos celebraram ontem o Dia da Paz e Reconciliação Nacional, data relevante no calendário dos grandes feitos nacionais. Passados 16 anos, os momentos que marcaram o metafórico enterro do machado da guerra ainda comovem. As imagens da cerimónia, de profundo alcance, apesar da simplicidade, são expressivas e circundadas de simbolismos. Aquelas imagens impactantes traduzem acções que nos permitem debater estruturantes questões nacionais, protegidos de fuzis. Ontem e hoje, festejamos a paz, esse bem maior que multiplica por milhões as possibilidades de construirmos um país melhor para todos.
A paz é obra em construção de milhões de angolanos. Não tem patronos exclusivos. Em diferentes momentos históricos, filhas e filhos de Angola deram o melhor de si para materializála. Na galeria de notáveis, destacam-se alguns nomes. O presidente José Eduardo dos Santos está entre essas figuras. Impossível negar o seu papel na resolução do conflito, independentemente de outras leituras que se possam fazer do seu consulado.
No momento crucial, José Eduardo dos Santos fez valer a sua autoridade de Comandante em Chefe, para gerir, de forma ponderada, a vitória militar, consubstanciada na morte em combate do líder histórico da UNITA. A prática comprovou que, em situações do género, uma voz de comando audível faz toda a diferença. Também por causa do seu carácter, mas não exclusivamente por isso, transmitiu calma e confiança necessárias para refrear a euforia de apologistas da aniquilação dos adversários, uma vez partida a sua espinha dorsal. Por sua vez, os membros do Alto Comando das FALA, que resistiram às investidas das tropas governamentais, com destaque para os generais Lukamba Paulo “Gato”, “Kamorteiro” e o diplomata Alcides Sakala, souberam, em consonância com os demais dirigentes da UNITA, manter a serenidade. Sentaram-se à mesa de negociações, tendo conseguido mobilizar a tropa para respeitar integralmente o cessar-fogo, assinado no Moxico, a 30 de Março. A postura dos militares da UNITA deitou por terra vaticínios pessimistas, que auguravam a instalação de focos de tensão alimentados por desertores descontentes.
Quando as armas se silenciaram, voltou a haver livre circulação de pessoas e bens nas estradas nacionais. Retomámos práticas impensáveis nos duros anos de guerra. Viajantes, acompanhados ou não, cruzam as estradas do país. Autocarros lotados de passageiros e camiões com cargas circulam dia e noite, tendo como receio único o péssimo estado das vias rodoviárias, encurtam distâncias. Os mais jovens não conseguem conceber o contexto em que viagens por terra só eram possíveis em longas colunas com protecção militar, mesmo assim desprovidas de quaisquer garantias de segurança. Algo tão simples, como sair de uma localidade para outra, implicava, em muitas áreas do país, o risco de morte. Felizmente, é passado.
Por mais doloroso que seja, ninguém tem poder para mudar os factos. A esta altura, já faz falta um Memorial da Paz, onde se reflictam as diferentes visões sobre o que realmente aconteceu em Mavinga, no Cuito Cuanavale, na Jamba. Os angolanos têm o direito de saber a verdade, não para fazer julgamentos, mas para apurar o que conduziu ao ponto de ruptura. Precisamos de ficar em paz com a própria consciência.
No Memorial da Paz, seriam contadas histórias sobre os caminhos da paz. Há espaço para todos no hipotético Memorial da Paz. O próprio Savimbi oferece um prato para investigadores descomprometidos com causas partidárias. Heróis esquecidos como Holden Roberto, Daniel Chipenda, Viriato da Cruz e muitos outros, incluindo os anónimos para o grande público, merecem o seu lugar na história, um espaço sem lugares cativos para vilões e heróis. Em tempos de guerra, ninguém o é em termos absolutos.