Jornal de Angola

Lambula não é manga de 10

- Osvaldo Gonçalves

Era sábado, dia de facturar nos papoites, que vinham comprar peixe, porque lhes mandavam nas mamoites. Elas ficavam em casa atentas às redes sociais, quem esteve aqui, quem esteve acolá, não era fofoca, era só curiosidad­e, se eles diziam que sexta-feira era “Dia do Homem”, sábado era “Dia das Mulheres” saberem de tudo. Por isso, mandavam os maridos ao mercado, ou à praia, peixe comprado nas mãos do pescador ficava mais em conta. E ela ali a baratear: “Arreou na minha vassoura. Arreou, arreou! Toda hora pidí na vizinha, te falam malê...”.

Ainda por cima, vinha logo atrás dela uma zungueira do carrinho de mão: “Cartão de ovo 1500, tem olho parma, tem fuba de bombô, tem fuba de milho. Pergunta!”. Era assim no mercado, fosse nos Congolense­s, na Estalagem, no Tira Biquini, na Chapada ou nas Corridas. Calulú de verdade, peixe grosso, peixe fino, peixe fresco, peixe seco, toda as ramas, brinjela, losssaka, quiabos e ainda limão e jindungo kahombo e kalakate, para kuiar mais. Ah! ah! Sai caro!

Ainda assim, havia tempo para ouvir estórias. No asfalto escorregad­io, os pneus chiaram (quiiii) e logo ouviu-se um som seco (pum). “O motorista do jipe branco estava distraído a olhar no curtinho da miúda. Manga de 10, como agora lhes chamam. Li mesmo nas redes sociais”. Não leu, sabemos que lhe contaram mesmo! Na praia, já a noite silenciosa se enchia de exclamaçõe­s. “Uaué, Ngana Zambié” – gritou a Tia Mãe, as mãos nos cabelos cinza desgrenhad­os. O pescador sentado no separador entre a via de ir e a via de vir; o motoqueiro “vrrum-vrrruum” estatelado no passeio, o capacete a sangrar. A moto ainda a trabalhar “tum-tum-tum”. O povo do kilombo abandonou o negócio e correu para a estrada. Logologo, o Da Pesada pontapeou as Doc Martens do homem da cidade. “A essa hora da madrugada se anda assim com velocidade?”. Foi então que viu o corpo da miúda estatelado no meiofio, a via da direita para quem vai, a da esquerda para quem vem.

O De Bem ficou a olhar com o reco de kapuca na mão, o corpo a balançar como um mastro de bambu ao vento de Norte. “Deixa o falecido em paz. A culpa é do Cem Braça, que errou no azimute”. Um vinco surgiu na cara do pescador de alto-mar. Refeito do susto, Cem Braça não queria responsabi­lidades além do garrafão de kimbombo que babava dentro do saco preto com calendário. “Azimute, azimute quié? Aqui não é na maré, viu? Estás a confundir água doce com água sargada? Sô Cem Braça, não sou da areia como você, seu bandeiro!”. De Bem puxava todas as noites a rede de banda-banda para Terra. Não sabia nadar. “Mar é para os peixes. Cada um é como cada qual”, costumava dizer. “Estás a querer m’atrofiar?”.

Antes que as vias fossem aos factos, apareceu um carro da patrulha, que recolheu o corpo do motociclis­ta e a cebeérre dele ainda a fazer “tum-tum-tum” no quintal do jipe. Os polícias recolheram também o corpo da moça, calção curtinho, xuxuado, manga de 10.

O Da Pesada voltou para o seu canto e acendeu o coto do pica. O De Bem pediu mais um reco fiado. O Cem Braça foi se sentar nas pedras do quebra-mar a olhar a Lua Nova. A Tia Mãe ajeitou as brasas no fogareiro, a pensar que tinha de ver nos fardos um casaco de couro igual ao do motoqueiro para dar ao filho estudante. E a paz voltou ao kilombo. Na praia, na Ilha.

Quanto mais não bastasse, já tinha quatro sardinhas frescas para o mufete: duas lambulas e duas paietas. Era o suficiente. As lambulas eram para ela, as paietas eram para o marido, que não as distinguia, sempre a confundir a trave com a porta. Ainda por cima, gostava de repetir o erro lido algures na Internet: “Lambula virou peito-alto”. Onde já se viu confundir peixe com carne? Só faltava mais essa, não bastasse a confusão gerada pelo Povo, levado na conversa pelas zungueiras do asfalto. Um dia ainda ia-lhe mostrar a diferença e explicar tudo muito bem explicado: paieta vem de “palheta”, que antigament­e era usada nos barcos, entre as cavernas, para encher as frestas com estopa; as lambulas eram “lombudas”, tinham lombo. Era preciso deixar de confundir. Lambula não é manga de 10!

Onde já se viu confundir peixe com carne? Só faltava mais essa, não bastasse a confusão gerada pelo Povo, levado na conversa pelas zungueiras do asfalto

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