“Treinar na Cidadela era um grande motivo para estar na Selecção”
SECRETÁRIA DE ESTADO ANA PAULA SACRAMENTO Governante participou na primeira conquista africana em andebol
A secretária de Estado dos Desportos, Ana Paula Sacramento, integrou a Selecção Nacional sénior feminina de andebol que conquistou o primeiro título africano na cidade de Argel, em 1989. Formada em Química e Física pela Universidade Agostinho Neto, Ana Sacramento, enquanto atleta da modalidade mais titulada do país, passou pelas equipas do Neves Bendinha e do Petro de Luanda, embora tenha reforçado ao longo da carreira desportiva outras equipas. A governante, em entrevista concedida ao Jornal de Angola, conta as peripécias que envolveram a conquista do troféu continental e as expectativas em relação à disputa do Campeonato Africano das Nações (CAN) em Luanda.
Jornal de Angola - Quando começou a praticar desporto?
Ana Sacramento
- Comecei na escola. Os atletas despontavam nas aulas de Educação Física. Pratiquei voleibol, basquetebol e andebol. Fazíamos de tudo e depois, com o conselho do professor, o aluno escolhia a modalidade para a qual tinha mais inclinação. O grosso da equipa da minha escola escolheu andebol. Por isso, também optei por esta modalidade.
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Jornal de Angola Quais foram os clubes onde jogou?
Ana Sacramento
- Enquanto jogava na escola também competia no Neves Bendinha. Infelizmente, em 1979, foi extinto e nós ficamos sem clube. Mas o Petro de Luanda não tinha equipa feminina. André Bandeira foi o primeiro treinador e fizemos a época com oito atletas. Em 1981, reforcei a Educação de Benguela, a seguir de Luanda e do Namibe. O Petro de Luanda e Ferrovia eram os rivais da época.
Jornal de Angola - Quando começou a competir em provas internacionais?
Ana Sacramento
- Inicialmente, a nível da Taça dos Clubes Campeões com o Petro de Luanda e o Ferroviário. Com os títulos alcançados em 1987 e 88, adquirimos experiência. O processo de rejuvenescimento não acontecia e serviu para ganhar experiencia de colectivismo, associativismo e patriotismo.
Jornal de Angola - Como foi a conquista do primeiro título africano?
Ana Sacramento
- Para jogar o Campeonato Africano, disputávamos eliminatórias. Embora pioneiras na modalidade, jogámos a primeira mão em Luanda com uma equipa dos Camarões e na primeira parte perdemos por 1-19. Na segunda parte, só marcámos dois golos. Era uma diferença abismal. Demorámos dez anos até conseguir conquistar o título. Foi possível por causa da experiência adquirida na Taça dos Clubes Campeões, onde o Petro de Luanda e o Ferroviário já tinham brilhado no pódio. Os triunfos a nível de clubes galvanizaram-nos e permitiu que continuássemos juntas. Com espírito de patriotismo e de missão, vencemos o CAN em 1989.
Jornal de Angola - Quais foram as dificuldades na época?
Ana Sacramento
- Foi difícil chegar à elite do andebol africano. Tivemos uma caminhada longa. O nosso uniforme não era igual ao das outras. O Ferrovia, 1º de Agosto e Petro de Luanda ainda tinham piso de cimento. Depois, passámos a treinar só na Cidadela e treinar lá era a nossa motivação. As atletas esforçavam-se para chegar à selecção e deixar de treinar no cimento. Não havia transporte e Angola estava em guerra. Para nós, era muito importante batalhar, para ver hasteada a bandeira da República. Às vezes, não havia alimentação apropriada, enfrentávamos muitas dificuldades, mas nos sentíamos privilegiadas. Mesmo com falta de pão, estávamos sempre bem dispostas para os treinos. Na nossa idade, éramos sempre alegres.
Jornal de Angola - Que preparação foi feita, com vista ao alcance do ceptro? Ana Sacramento
- Estagiámos na ex-União Soviética (actual Rússia), onde tivemos a oportunidade de conhecer uma senhora mais velha. Com a senhora, fizemos várias visitas e tínhamos de fazer promessas relacionadas à competição. Era uma espécie de terapia, ela preparou-nos para vencer. O grupo era muito coeso e todas ajudavam-se. Treinávamos muito para que não fôssemos dispensadas. Por ser o primeiro troféu, teve um sabor especial. Sinto-me orgulhosa por ter feito parte deste grupo.
Jornal de Angola - Quais foram as contrariedades enfrentadas no palco da prova? Ana Sacramento
- Há países que não facilitam a vida ao adversário. Na Argélia, ficamos alojadas a 300 quilómetros de distância do local de competição e a equipa da casa já lá estava a trabalhar. Burmedese era uma cidade para pessoas portadoras de deficiência física, totalmente adaptada. Não estávamos habituadas a ver aquilo e também mexeu com a nossa psique. Mas nada nos tirou o foco, que era a vitória. Dissemos: ou agora ou nunca. No jogo das meias-finais, derrotámos as anfitriãs num clima quente e de muita adversidade. Psicologicamente, estávamos bem. A nossa preparação psicológica trouxe ao de cima a boa forma física.
Jogámos a final diante da Costa do Marfim, que frequentemente nos derrotava por dez golos. Naquele dia, elas perderam por cinco. A partir daquela conquista, Angola começou a tomar gosto pelo pódio e de lá nunca mais saiu. As zonas protegem-se. Na região cinco, andebol é só Angola. Nós competíamos com os países da África Central. A Costa do Marfim era de uma linha física muito agressiva, com atletas cuja compleição era superior à nossa. Aprendemos a superar os desafios e vencer. Não é nosso hábito reclamar da arbitragem ou da organização. A nossa preparação física, técnica e táctica foi superior e a nossa defesa era é muito forte. O atleta sente quando não marca golos e o público apupa. Mas no meio daquele barulho, só ouvíamos a voz do treinador e das colegas. Felizmente, o desporto nos dá essa capacidade.
Jornal de Angola - Na época, quais eram as maiores potências da modalidade?
Ana Sacramento
- Havia três selecções muito fortes. Congo Brazzaville, Costa do Marfim e Camarões e estagiavam na França durante cerca de três meses. Nós investimos nos escalões de formação, com o apoio do Ministério de Educação e da Secretaria de Estado para o Desporto.
Jornal de Angola - Havia muita concorrência no posto específico em que jogava?
Ana Sacramento
- Não havia. Eu fiquei cerca de dez anos naquela posição. Fui do “sete” inicial até à altura que deixei de jogar em 1991. Estava a fazer o curso de Química na Faculdade de Ciências e tinha a cadeira de Electromagnetismo e aulas práticas em atraso. Não podia continuar e se reprovasse seria proscrita. Tínhamos o instrumento jurídico que nos protegia, mas a responsabilidade de se manter na escola era nossa. Depois da vitória nos Jogos Africanos do Cairo, na CAN ocupámos o segundo lugar do pódio. Precisava mesmo dedicar-me aos estudos e, depois, integrei o elenco federativo nas vestes de dirigente desportiva.
Jornal de Angola - Quais as diferenças e semelhanças entre a selecção do primeiro título e a actual?
Ana Sacramento
- Naquela altura, jogávamos por amor à pátria. O patriotismo estava acima de tudo. Depois, as coisas mudaram e as atletas começaram a exigir outras coisas. Temos o ordenamento jurídico claro e nada se sobrepõe a uma lei ou decreto presidencial. Há um instrumento que regula a questão dos prémios. Quando uma atleta representa a selecção, precisa saber quais os seus direitos e de que forma deverá exercê-los. Hoje, vejo que falta um pouco de patriotismo. A semelhança é que a selecção continua forte. O testemunho foi bem passado, mas não quer dizer que elas não sejam patriotas. No tempo de bonança, todos temos. Quando há dificuldades, é preciso entender que as coisas não estão acessíveis. Embora toda a gente sinta necessidade de querer, ser e estar. É preciso compreensão.
Jornal de Angola - Em que aspectos é que a selecção actual supera a de 1989?
Ana Sacramento
- (Risos)... A técnica. Hoje, é possível conseguir meios avançados para a evolução das atletas e alcançar maiores rendimentos. O Centro de Medicina Desportiva está bem equipado. Isso permite acompanhar as atletas e recuperá-las em tempo útil. Actualmente, há condições para o treinamento, musculação e ginásio. Em 1989, a bola medicinal servia para tudo. A impulsão era feita nas bancadas; para trabalhar a força, carregávamos a colega e para a resistência corríamos do início do Porto até à rotunda da peixeira.
Jornal de Angola - Em termos competitivos?
Ana Sacramento
- É satisfatório. Fruto do nível académico, a compreensão ajuda muito. A selecção hoje tem a possibilidade de fazer treinos com sessões de vídeo, estudam a desenvoltura e a musculatura do adversário. Nesta fase, o uniforme é mais leve e a sapatilha é a mais adequada.
Jornal de Angola - Em termos de conquistas?
Ana Sacramento
- Elas têm um legado. O testemunho foi bem passado. Já é cultura da atleta angolana pensar só em vitória. O objectivo é ser campeã. Hoje, já se pensa em mundiais e Jogos Olímpicos. Em África, a hegemonia está bem firmada. A selecção tem capacidade para ombrear com outras e, às vezes, não vence por causa de outros “entretantos”.
Jornal de Angola - Como antevê a disputa do CAN em Luanda pela terceira vez?
Ana Sacramento
- O meu pensamento não difere dos demais, ver a selecção a exibir-se bem e a resgatar o título. Desejo que as atletas e a equipa técnica regressem bem do estágio, sem quaisquer mazelas. As atletas devem cumprir ao máximo as orientações dos treinadores. Nós estaremos aqui para acarinhá-las. Antes da saída para o estágio, fizemos uma despedida. Reunimos na Galeria dos Desportos e elas partiram daqui sabendo que estamos a sentir o mesmo que elas.
Jornal de Angola - Por aquilo que foi a despedida, sentiu que estão reunidas as condições para a conquista do 12º troféu?
Ana Sacramento
- Estão. A força anímica da selecção é alta. Falámos sobre as dificuldades, o estado do país e tudo. Foram convencidas.