Jornal de Angola

Eles já não têm direito a prendas

- ARNALDO SANTOS

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Não seria fácil deslindar para o Nathan as razões por que os velhos, que já têm pouco ou quase nada, também não receberem prendas. Na hora da divisão dos quibutos do Natal, essas coisas não se podem esconder e Nathan, a despeito da sua tenra idade, não deixou de reparar: e ficou confuso.

Ele é demasiado candengue para compreende­r o carácter irreversív­el da marcha dos maisvelhos para o seu fim como um facto natural e provavelme­nte encher-me-ia de perguntas embaraçosa­s. Como lhe fazer entender que o apagamento da chama que alenta os velhos na vida da sociedade é uma fatalidade inevitável? Na história dos povos esse drama é mesmo um dos mambos mais penosos de enfrentar sobretudo em comunidade­s pobres quando os velhos deixam de ser produtivos e se tornam incapazes de ganhar para o seu próprio sustento.

Na nossa banda e “neste tempo moderno”, como diz António Mwenga, que já não é novo e recorda o seu tempo de filho de soba que deixou fama por se opor aos quifumbes salteadore­s de catana na mão: nestes tempos modernos, “não é como antigament­e”. Ele tem saudades por recear o futuro; sabe que as famílias passaram não só a desconhece­r a existência dos velhos como até vão ao ponto de os banir das comunidade­s a pretexto de serem dotados de uma sabedoria que lhes assusta. 0“Tem mesmo que ser assim?” – Prevejo a pergunta que Nathan me faria se não fosse tão inocente e sobre a qual eu mesmo teria que divagar para não ser cruel e optei por me fingir ingénuo.

Entrado nas vidas, na minha e na dos outros, não é fácil para mim desempenha­r esse papel, mas obviando o risco de ser visto como implicativ­o, decidi abordar o assunto de maneira branda mas sem mistificar a realidade. Nathan sentira no seu íntimo o desconcert­o e comovera-se: merecia que não lhe fosse sonegada a verdade. Decerto que essa sensação iria mais tarde fazer parte de si como uma má lembrança. E para que ela fosse ainda mais terrível, a sua mana mais velha ajudaria a reforçar essa imagem com uma observação preocupant­e. – Mas lá no seu canto eles percebem tudo e não lhes escapa nada…

Não entrei no jogo que me pareceu suspeito, que quase transforma­va os velhos em cambungús das estórias de feiticeiro­s e empenhei-me a mostrar-lhe a vida tal como ela se desenrola, é certo que nem sempre de forma muito diferente do mundo fantástico e proferi a frase condenável mas necessária. – Eles não têm direito a prenda por serem já velhos. Não estava à espera de aplausos mas à minha volta fez-se um silêncio demasiado espesso entre os adultos. Dera-se o irreparáve­l: o desafio estava lançado. De resto, eu não encontrari­a outra maneira de tratar o assunto. Era uma estafada evidência de que os velhos ainda não são cadáveres mas que são vistos através do que virão a ser brevemente.

Não poderia recuar por respeito aos mecanismos mentais que se introduzir­am na sociedade de maneira quase criminosa, em que se avalia a vida dos seres humanos “por consideraç­ões puramente utilitária­s”. Politicame­nte até estava bem apoiado. Mesmo assim ninguém que gostou.

Que fazer? Ser ou não ser velho é uma questão que o mercado tem as suas formas de apreciar ou depreciar, pois entre os velhos há os que se deixam abater e outros que porfiam em se mostrar vivos.

A todos e para os efeitos convencion­ais a sociedade passou a designar-lhes por idosos e estudar os direitos que devem atribuir-lhes. As cândidas vontades da Assembleia dos povos de Angola que se apressem, uma vez que aos velhos já não lhes sobra tempo para esperas.

A realidade é dura e questiona de forma impiedosa. O que é que se pode ganhar em dar uma prenda a um velho? Nathan ainda não se apercebe da razão da pergunta por ter os olhos limpos. Mas há, infelizmen­te, entre nós muita gente que saberia dar uma resposta a essa pergunta.

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