Folha 8

A CABEÇA DE SALOMÉ: UM LIVRO DE SÍMBOLOS E LEMBRANÇAS

- TEXTO DE JOÃO FERNANDO ANDRÉ* * PROFESSOR, ENSAÍSTA, CRÍTICO LITERÁRIO E ESCRITOR

Ana Paula Tavares é daquelas escritoras que deveriam ser conhecidas por todos, mas, infelizmen­te, muitos a desconhece­m. Ler Ana Paula Tavares é passar pelo sudoeste e pelo noroeste, ver, de entre os vários povos que habitam um território de 1.246.700 km2, a gente e os elementos sociocultu­rais do sudoeste e do noroeste de Angola.

«

A CABEÇA DE SALOMÉ » , de Ana Paula Tavares, é uma obra composta por 36 textos. Na taxonomia literária, embora alguns textos estão mais para contos, a escritora os coloca na categoria das crónicas. Os textos desenrolam­se em contos, descrições e epístolas. No início de todos os textos que compõem a obra há algumas fórmulas curtas que enunciam uma observação de valor geral e, também, citações de alguns escritores e pensadores bem conhecidos. Essas citações e provérbios, na obra, acabam por servir de dobradiças para que os leitores, antes de lerem as unidades lexicais da escritora, caiam na reflexão. Ora, a reflexão extraída das citações que se encontram debaixo de cada título da obra « A Cabeça de Salomé » , será um dos possíveis caminhos pelos quais os leitores poderão compreende­r as crónicas. Em algumas crónicas que compõem a obra, o fito da escritora, com todos os atavios dos textos, é desenhar o amor, a inocência das crianças e o cuidado que algumas mães têm dado às mesmas. Como se pode constatar no primeiro texto da obra, intitulado « Dona Beba » . Repare- se na seguinte passagem: « Perante a exclamação incontrola­da de um de nós: « A senhora é um anjo! » , dona Beba passeou as mãos pela eternidade e disse: - não se entusiasme, menino, o anjo era ele, eu vivi p’ra tomar conta » ( p. 78). Em outras crónicas, mais do que recriar a partir do epistolári­o de algumas pessoas ( Carta de Dona Ana Joaquina ao muatiânvua Noéji, senhor de todas as Lundas [ p. 51]; Carta de Noéji, senhor de todas as Lundas, a Dona Ana Joaquina [ p. 57]; Carta para Alexandra[ p. 75]), ela apresenta elementos da história de Angola, descreve a vida nas lundas e, enfim, denuncia os problemas dos povos do noroeste e do sudoeste angolano. Atenta- se: « Há mesmo gente que constrói altares. Talvez para que o sacrifício seja mais fácil. Para ti minha irmã do mundo, desejo sorte e que consigas dizer da morte anunciada das mulheres, do choro das crianças, lá em todos os sítios onde, ao que parece, o mundo anda do avesso e a terra não consegue completar as suas trezentas e muitas voltas em torno do sol » ( p. 78). Outras dificuldad­es sociais com as quais os tucokwe se debatem podem ser conhecidas se atentarmos nas passagens das páginas 57 e 60: « descobrimo­s a dureza dos caminhos, e a pressa: feridas antigas jorravam sangue de novo e duas estranhas doenças, que não conhecemos na Lunda, estavam nos seus passos: bichinhos minúsculos como os olhos das lagartas tinham- se plantado – casa, comida e abrigo » . (...) « Escutando com atenção, se pode ouvir o futuro e esse não traz nada de bom para os nossos território­s » . O acto de escrever exige do escritor muito cuidado para com a coesão e a coerência. A autora de « A CABEÇA DE SALOMÉ » demonstra pujança na arte de escrever, porquanto, experiment­adas as diversas formas de crónicas, a coerência e a coesão estão presentes em todos os textos. Alguns estudiosos dos textos em prosa defendem a ideia de que « enquanto a narração representa a parte dinâmica no desenvolvi­mento da acção, a descrição representa um momento estático, de pausa » . Ora, na obra que nos propusemos a descodific­ar, Ana Paula Tavares explora a descrição de tal forma que essa afirmação acaba por cair por terra, pois a descrição na mesma transmite movimento, dinâmica no desenvolvi­mento do texto, como nas pinturas dos futuristas. A obra é toda ela cheia de descrições do tempo, de viagem, de elementos do sul de Angola, de Tarrafal, de Chão- Bom, de Luanda, de Kinaxixi e das Lundas. Presta- se atenção aos seguintes extractos: « Acordámos numa manhã de erva- doce e tamarindos e, enquanto a noite se decompunha sobre o mar, preparámos o corpo para a viagem » ( p. 9). Como na escrita de Ruy Duarte de Carvalho, « A CABEÇA DE SALOMÉ encerra em si muitos símbolos que pertencem ao « museu imaginário » , lugar mental, espaço imaginário sem fronteiras, dos povos do sul e do noroeste de Angola. Em A Cabeça de Solomé, crónica que dá título a obra, é possível confirmars­e esta nossa afirmação no primeiro parágrafo: « conta- se que Na- Palavra vivia a sua condição de serpente velha e maldita, guardando o território e a palavra, medindo o tempo na balança de cobre dos antepassad­os, os guardadore­s das fontes dos rios no nó do Kassai. Liberto de peso, começava os dias a desenhar na areia o desenho fundador. (…) as árvores expunham, ao vento solto, a sua idade, amarradas em colares suspensos pelos seus troncos. Podiam, mesmo, ver- se os corações de tacula em dias mais claros ou sobre o sopro fresco da tarde » ( p. 13). No trecho atrás citado, porque a conotação é a marca do texto de cariz literário, podemos encontrar, através da hermenêuti­ca, ciência voltada à interpreta­ção dos signos e do seu valor simbólico, elementos da Lunda- Sul ( os soma, ideografia­s desenhadas na areia, o rio Kassai, que nasce em Angola, no Alto Chicapa, dirige- se para norte, e serve de fronteira entre Angola e a República Democrátic­a do Congo), de Cabinda ( a árvore cuja madeira tem veios de um brilhante carmesim, usada em tinturaria, a tacula), da Huíla ( « as árvores expunham, ao vento solto, a sua idade, amarradas em colares suspensos pelos seus troncos. Podiam, mesmo, ver- se os corações de tacula em dias mais claros ou sobre o sopro fresco da tarde » ) , no caso, as árvores poderão ser as mulheres mwila que, normalment­e, não costumam cobrir os seios com alguma vestimenta e ataviam- se com missangas por entre o pescoço). Para além dos provérbios e frases de alguns escritores e pensadores, também podemos encontrar, debaixo de quase todos os textos, algumas gravuras de crianças, senhoras, jovens, estrelas, prédios, bichos e máscaras. Tais retratos funcionam como meio de contemplaç­ão depois da leitura de cada uma das crónicas e contos que formam toda a obra.

Rematando, pela enorme carga simbólica e pelo modo como a escritora tece cada um dos textos literários, « A CABEÇA DE SALOMÉ » é uma obra não aconselhad­a aos leitores não coevos. Outrossim, a referida obra acaba por ser mais uma amostra do génio criativo da escritora Ana Paula Tavares. Por tudo que afirmamos depois da nossa leitura e releitura da obra, podemos dizer que « A CABEÇA DE SALOMÉ » é uma obra literária de « três estrelas » .

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola