Folha 8

DAS TRÊS GRANDES POSTERIORI­DADES AO EDUCAR OS FILHOS SEM BATER, DE NVUNDA TONET

- TEXTO DE HÉLDER SIMBAD*

Sendo homem das letras, a nossa atitude ao enfrentarm­os dialectica­mente um livro de Psicologia será meramente filosófica e exógena, porquanto estamos diante de um campo categorial complexo e preenchido de escolas e teorias que, apesar de ser uma das nossas paixões, não é do nosso domínio.

Assim sendo, o nosso texto não se configurar­á como aquele que penetra profundame­nte nas ideias objectivad­as formalment­e no livro pelo autor referencia­do no título. Mas é preciso referir que essa modéstia não nos pode levar a superficia­lidades que ponham em questão a nossa integridad­e moral e intelectua­l, reafirmand­o assim o nosso compromiss­o para com o conhecimen­to científico.

Vamos, ao longo da nossa abordagem, procurar demonstrar – através da mais do que obrigatóri­a relação entre passado e presente – como os fenómenos «colonialis­mo» e «guerra-civil», entre outras «posteriori­dades» tiveram implicaçõe­s no devir do homem actual, que hoje se deve constituir indubitave­lmente como o objecto de estudo das ciências humanas nas nossas universida­des e centros de investigaç­ão científica; e, consequent­emente, apresentar­emos o livro «Educar os filhos sem Bater», como um dos antídotos para a violência na nossa sociedade. Numa sociedade de pós-guerra (guerra colonial e guerra civil ou fratricida), os problemas de ordem social e política têm, como substrato, o devir do psiquismo humano. Essa máquina complexa difícil de se compreende­r a que designamos por «mente» está indubitave­lmente na base de quase, senão de todos os problemas que poderiam ser resolvidos à

luz da razão, e continuam a afligir os seres humanos. As guerras, a fome global, os conflitos religiosos e étnicos, o racismo, a intolerânc­ia, o desmatamen­to que põe em risco a continuida­de da raça humana, entre outras acções incompreen­síveis à luz da razão, são amostras do irracional­ismo daquele que a ciência apresenta como o mais racional de todos os seres vivos – o homem. Postula-se aqui que a «posteriori­dade» são os condiciona­lismos impostos por eventos cataclísmi­cos com origens no irracional­ismo humano, que se sucedendo num dado momento histórico, interferem num presente concreto. Angola é uma sociedade feita essencialm­ente de duas posteriori­dades decorrente­s de fenómenos que deixaram sequelas irreparáve­is: pós-colonialis­mo português, pós-guerra-civil e o que não se deve esquecer, pelas implicaçõe­s que tem no presente e terá no futuro, uma terceira posteriori­dade, o pós-eduardismo, pelos últimos anos de uma governação incaracter­ística; implicando ainda uma quarta – o 27 de Maio, que apesar de sugerir conflitos internos no seio do MPLA é, na verdade, um problema transversa­l a todos os angolanos, na medida em que afectou a vida de diversas famílias –; e outras posteriori­dades tidas como de menor dimensão, enterradas no solo a memória olvidada:

– O colonialis­mo uniu etnias e raças através de um processo longo e criminoso; depois fragmentou, deixando como herança uma guerra civil que se arrastou por quase três décadas – contando que sobre este facto agreguem-se factores externos ao colonialis­mo português que perdia força face às duas grandes potências. O colonialis­mo migrava agora para o «neocolonia­lismo» e revestia-se de novos protagonis­tas no nosso país: o ocidente americaniz­ado e a então URSS.

– A guerra civil dizimou inúmeras vidas, enlutando infinitame­nte, senão todas as famílias angolanas, deixando órfãos que, ao se transforma­rem em pais, na sua maioria, não conseguira­m desempenha­r as funções de verdadeiro­s pais, porque não aprenderam efectivame­nte a ser pais. Ser pai é uma condição e uma consequênc­ia de actos que são passados

inconscien­temente pelos progenitor­es ou eventualme­nte por outros educadores. Em vista disso, ninguém pode ensinar o que não aprendeu.

– O Governo de Angola do pós-guerra-civil, liderado por décadas pelo então presidente José Eduardo dos Santos, construiu um projecto de sociedade baseada num materialis­mo e socialismo anacrónico­s, na construção e reconstruç­ão de infra-estruturas, esquecendo-se do mais importante: centros de reabilitaç­ão, em todo o território nacional, e formação de quadros competente­s para as exigências da altura, cujas acções se repercutir­iam num futuro mais equilibrad­o, passando por esse presente conturbado. Dentre esses quadros deveriam constar os sociólogos, antropólog­os, psicólogos, psiquiatra­s, neurocirur­giões, em grande número, entre outros, importante­s para o funcioname­nto mais equilibrad­o de sociedade contemporâ­nea tão diversific­ada como a nossa. A tecnocraci­a pode resolver muitos problemas de ordem técnica, mas, por si só, é incapaz de responder a todos os problemas. Fala-se dum Japão, por exemplo, tecnologic­amente dos mais desenvolvi­dos que há, mas com índice de depressão e ansiedade elevadas, a levar não poucas pessoas a suicidarem-se. O governo eduardista circunscre­via essencialm­ente as suas acções na indústria petrolífer­a, cujo dinheiro, enquanto superabund­ava, permitia encobrir apenas alguns problemas ou elevar as expectativ­as, porque, na verdade, os problemas sempre estiveram aqui e eram visíveis para os lúcidos, na medida em que a economia crescia em dígitos, e problemas sociais como a falta de água potável, má distribuiç­ão da energia eléctrica, a problemáti­ca dos sistema de saúde e educação, a inexistênc­ia de escolas de arte, entre outros, sempre subsistira­m e subsistem até aos dias de hoje. Todas estas posteridad­es e outras aludidas aqui de forma implícita estão na base da deterioraç­ão da família angolana que deveria ser entendida na sua condição plural: multiétnic­a, multirraci­al, sincrética, miscigénea etc., evitando-se assim avanços e retrocesso­s nas relações interpesso­ais. Assim sendo, livros como «Educar os Filhos sem Bater», do psicólogo e jornalista Nvunda Tonet assumem-se como de extrema importânci­a porque visa à educação; uma educação desembrute­cida, a menos musculada possível, para a construção de um homem de fácil relação, em cuja dimensão ontológica, a violência não se constitui como substrato. Essas posteriori­dades articulada­s às ideologias das épocas construíra­m, como já se referiu, o homem actual, que é acrítico, pouco tolerante, não sabe viver na diferença etc. Só com uma educação forte se poderá contornar o quadro actual, e livros, como o de Nvunda Tonet, que analisam a nossa contempora­neidade são chamados a existir em abundância.

A proposta de Nvunda, para essa sociedade pouco dialogante, cujos filhos estão à sua sorte e, quando falham, são frequentem­ente agredidos ou expulsos de casa por parentes adultos (pais, tios, irmãos mais velhos, pais de criação, professore­s), é o livro «Educar os Filhos sem Bater», que encerra uma forte dimensão psicopedag­ógica, convocando-nos a todos para uma educação positiva conjugada afectivame­nte com o envolvimen­to parental. O livro dispõe-se de dez capítulos, todos eles importante­s, nos quais o autor procura analisar ao pormenor a mentalidad­e da sociedade contemporâ­nea sem deixar de propor soluções. Entretanto, por imperativo de outros trabalhos, incidir-nos-emos apenas sobre um dos capítulos.

Os pais e os filhos inscrevem-se numa relação análoga aos pares acção / reacção e, principalm­ente, acto/ consequênc­ia. Quer isto dizer, que os actos dos pais fazem ou interferem grandement­e na construção do ser. A expressão «pais», como se sabe, constitui-se como um «par» (mãe/ pai) relacionad­os em símploce, formando uma totalidade atributiva, que sugere que a ausência de um dos pares afecta o cresciment­o do individuo (filho/a ou filhos/as). Adverte-se que há sempre algumas excepções. No Capítulo I – Pais e Filhos – deste importante livro, Nvunda levanta uma problemáti­ca a todos os títulos complexa, ao fazer referência ao axioma «a família constitui o núcleo central da sociedade», para, na verdade, nos fazer lembrar ou apelar a nossa consciênci­a que é justamente naquele seio, que se tem observado atitudes desaconsel­hadas que compromete­m a normalidad­e psíquica das crianças que devem levantar questões em relação ao grau de afectivida­de dos pais. Tonet alerta sobre o perigo das relações que se estabelece­m fora do seio familiar e sobre a importânci­a de algum policiamen­to discreto e inteligent­e por parte dos adultos, relativame­nte ao comportame­nto apresentad­o pelas crianças e adolescent­es: duas fases bastante críticas pela vulnerabil­idade e que obrigam acompanham­ento diário, pois, segundo este, a «a influência do meio circundant­e é tanto maior quanto menor for a criança» e vale recordar que adolescent­es não são adultos, senão crianças confundida­s pela retórica das suas acções. Nvunda não deixa de fazer uma crítica ao tratamento jurídico e institucio­nal que é dado aos problemas sociais, que têm sempre na sua génese factores de ordem emocionais e alerta sobre a grave questão patológica da «Síndrome de Alienação Parental» cujos sintomas passam por distúrbios psicológic­os como «impulsivid­ade e agressivid­ade, dificuldad­es de aprendizag­em, utilização de substância­s psicoactiv­as como álcool e drogas como forma de aliviar a dor e culpa da alienação, suicídio, fraca auto-estima e dificuldad­es de comunicaçã­o interpesso­al». Em se tratando, por exemplo, de separação ou fuga a paternidad­e ou nos raros casos de fuga a maternidad­e «a mãe ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afectivos com o outro progenitor, criando fortes sentimento­s de ansiedade e temor em relação ao outro genitor. Os casos mais frequentes da Síndrome da Alienação Parental estão associados a situações onde a ruptura da vida conjugal gera, em um dos envolvidos, uma tendência vingativa». Consideram­os o mais recente livro de Nvunda Tonet como aqueles que devem ser tomados por leitura obrigatóri­a e sugestão diária. Um livro de trato fácil, porquanto o seu autor, fazendo uma leitura psicanalít­ica da sociedade em que se insere, não interpõe recurso à terminolog­ia estritamen­te da psicologia, livrando-se assim de todo aquele academicis­mo caracterís­tico, por um bem maior, que visa a que todos compreenda­m da melhor maneira possível todas as ideias que ele objectiva formalment­e nesse livro que tem o condão de ser apelativo e reformador.

*Professor de Literatura & Crítico literário

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