DAS TRÊS GRANDES POSTERIORIDADES AO EDUCAR OS FILHOS SEM BATER, DE NVUNDA TONET
Sendo homem das letras, a nossa atitude ao enfrentarmos dialecticamente um livro de Psicologia será meramente filosófica e exógena, porquanto estamos diante de um campo categorial complexo e preenchido de escolas e teorias que, apesar de ser uma das nossas paixões, não é do nosso domínio.
Assim sendo, o nosso texto não se configurará como aquele que penetra profundamente nas ideias objectivadas formalmente no livro pelo autor referenciado no título. Mas é preciso referir que essa modéstia não nos pode levar a superficialidades que ponham em questão a nossa integridade moral e intelectual, reafirmando assim o nosso compromisso para com o conhecimento científico.
Vamos, ao longo da nossa abordagem, procurar demonstrar – através da mais do que obrigatória relação entre passado e presente – como os fenómenos «colonialismo» e «guerra-civil», entre outras «posterioridades» tiveram implicações no devir do homem actual, que hoje se deve constituir indubitavelmente como o objecto de estudo das ciências humanas nas nossas universidades e centros de investigação científica; e, consequentemente, apresentaremos o livro «Educar os filhos sem Bater», como um dos antídotos para a violência na nossa sociedade. Numa sociedade de pós-guerra (guerra colonial e guerra civil ou fratricida), os problemas de ordem social e política têm, como substrato, o devir do psiquismo humano. Essa máquina complexa difícil de se compreender a que designamos por «mente» está indubitavelmente na base de quase, senão de todos os problemas que poderiam ser resolvidos à
luz da razão, e continuam a afligir os seres humanos. As guerras, a fome global, os conflitos religiosos e étnicos, o racismo, a intolerância, o desmatamento que põe em risco a continuidade da raça humana, entre outras acções incompreensíveis à luz da razão, são amostras do irracionalismo daquele que a ciência apresenta como o mais racional de todos os seres vivos – o homem. Postula-se aqui que a «posterioridade» são os condicionalismos impostos por eventos cataclísmicos com origens no irracionalismo humano, que se sucedendo num dado momento histórico, interferem num presente concreto. Angola é uma sociedade feita essencialmente de duas posterioridades decorrentes de fenómenos que deixaram sequelas irreparáveis: pós-colonialismo português, pós-guerra-civil e o que não se deve esquecer, pelas implicações que tem no presente e terá no futuro, uma terceira posterioridade, o pós-eduardismo, pelos últimos anos de uma governação incaracterística; implicando ainda uma quarta – o 27 de Maio, que apesar de sugerir conflitos internos no seio do MPLA é, na verdade, um problema transversal a todos os angolanos, na medida em que afectou a vida de diversas famílias –; e outras posterioridades tidas como de menor dimensão, enterradas no solo a memória olvidada:
– O colonialismo uniu etnias e raças através de um processo longo e criminoso; depois fragmentou, deixando como herança uma guerra civil que se arrastou por quase três décadas – contando que sobre este facto agreguem-se factores externos ao colonialismo português que perdia força face às duas grandes potências. O colonialismo migrava agora para o «neocolonialismo» e revestia-se de novos protagonistas no nosso país: o ocidente americanizado e a então URSS.
– A guerra civil dizimou inúmeras vidas, enlutando infinitamente, senão todas as famílias angolanas, deixando órfãos que, ao se transformarem em pais, na sua maioria, não conseguiram desempenhar as funções de verdadeiros pais, porque não aprenderam efectivamente a ser pais. Ser pai é uma condição e uma consequência de actos que são passados
inconscientemente pelos progenitores ou eventualmente por outros educadores. Em vista disso, ninguém pode ensinar o que não aprendeu.
– O Governo de Angola do pós-guerra-civil, liderado por décadas pelo então presidente José Eduardo dos Santos, construiu um projecto de sociedade baseada num materialismo e socialismo anacrónicos, na construção e reconstrução de infra-estruturas, esquecendo-se do mais importante: centros de reabilitação, em todo o território nacional, e formação de quadros competentes para as exigências da altura, cujas acções se repercutiriam num futuro mais equilibrado, passando por esse presente conturbado. Dentre esses quadros deveriam constar os sociólogos, antropólogos, psicólogos, psiquiatras, neurocirurgiões, em grande número, entre outros, importantes para o funcionamento mais equilibrado de sociedade contemporânea tão diversificada como a nossa. A tecnocracia pode resolver muitos problemas de ordem técnica, mas, por si só, é incapaz de responder a todos os problemas. Fala-se dum Japão, por exemplo, tecnologicamente dos mais desenvolvidos que há, mas com índice de depressão e ansiedade elevadas, a levar não poucas pessoas a suicidarem-se. O governo eduardista circunscrevia essencialmente as suas acções na indústria petrolífera, cujo dinheiro, enquanto superabundava, permitia encobrir apenas alguns problemas ou elevar as expectativas, porque, na verdade, os problemas sempre estiveram aqui e eram visíveis para os lúcidos, na medida em que a economia crescia em dígitos, e problemas sociais como a falta de água potável, má distribuição da energia eléctrica, a problemática dos sistema de saúde e educação, a inexistência de escolas de arte, entre outros, sempre subsistiram e subsistem até aos dias de hoje. Todas estas posteridades e outras aludidas aqui de forma implícita estão na base da deterioração da família angolana que deveria ser entendida na sua condição plural: multiétnica, multirracial, sincrética, miscigénea etc., evitando-se assim avanços e retrocessos nas relações interpessoais. Assim sendo, livros como «Educar os Filhos sem Bater», do psicólogo e jornalista Nvunda Tonet assumem-se como de extrema importância porque visa à educação; uma educação desembrutecida, a menos musculada possível, para a construção de um homem de fácil relação, em cuja dimensão ontológica, a violência não se constitui como substrato. Essas posterioridades articuladas às ideologias das épocas construíram, como já se referiu, o homem actual, que é acrítico, pouco tolerante, não sabe viver na diferença etc. Só com uma educação forte se poderá contornar o quadro actual, e livros, como o de Nvunda Tonet, que analisam a nossa contemporaneidade são chamados a existir em abundância.
A proposta de Nvunda, para essa sociedade pouco dialogante, cujos filhos estão à sua sorte e, quando falham, são frequentemente agredidos ou expulsos de casa por parentes adultos (pais, tios, irmãos mais velhos, pais de criação, professores), é o livro «Educar os Filhos sem Bater», que encerra uma forte dimensão psicopedagógica, convocando-nos a todos para uma educação positiva conjugada afectivamente com o envolvimento parental. O livro dispõe-se de dez capítulos, todos eles importantes, nos quais o autor procura analisar ao pormenor a mentalidade da sociedade contemporânea sem deixar de propor soluções. Entretanto, por imperativo de outros trabalhos, incidir-nos-emos apenas sobre um dos capítulos.
Os pais e os filhos inscrevem-se numa relação análoga aos pares acção / reacção e, principalmente, acto/ consequência. Quer isto dizer, que os actos dos pais fazem ou interferem grandemente na construção do ser. A expressão «pais», como se sabe, constitui-se como um «par» (mãe/ pai) relacionados em símploce, formando uma totalidade atributiva, que sugere que a ausência de um dos pares afecta o crescimento do individuo (filho/a ou filhos/as). Adverte-se que há sempre algumas excepções. No Capítulo I – Pais e Filhos – deste importante livro, Nvunda levanta uma problemática a todos os títulos complexa, ao fazer referência ao axioma «a família constitui o núcleo central da sociedade», para, na verdade, nos fazer lembrar ou apelar a nossa consciência que é justamente naquele seio, que se tem observado atitudes desaconselhadas que comprometem a normalidade psíquica das crianças que devem levantar questões em relação ao grau de afectividade dos pais. Tonet alerta sobre o perigo das relações que se estabelecem fora do seio familiar e sobre a importância de algum policiamento discreto e inteligente por parte dos adultos, relativamente ao comportamento apresentado pelas crianças e adolescentes: duas fases bastante críticas pela vulnerabilidade e que obrigam acompanhamento diário, pois, segundo este, a «a influência do meio circundante é tanto maior quanto menor for a criança» e vale recordar que adolescentes não são adultos, senão crianças confundidas pela retórica das suas acções. Nvunda não deixa de fazer uma crítica ao tratamento jurídico e institucional que é dado aos problemas sociais, que têm sempre na sua génese factores de ordem emocionais e alerta sobre a grave questão patológica da «Síndrome de Alienação Parental» cujos sintomas passam por distúrbios psicológicos como «impulsividade e agressividade, dificuldades de aprendizagem, utilização de substâncias psicoactivas como álcool e drogas como forma de aliviar a dor e culpa da alienação, suicídio, fraca auto-estima e dificuldades de comunicação interpessoal». Em se tratando, por exemplo, de separação ou fuga a paternidade ou nos raros casos de fuga a maternidade «a mãe ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afectivos com o outro progenitor, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor. Os casos mais frequentes da Síndrome da Alienação Parental estão associados a situações onde a ruptura da vida conjugal gera, em um dos envolvidos, uma tendência vingativa». Consideramos o mais recente livro de Nvunda Tonet como aqueles que devem ser tomados por leitura obrigatória e sugestão diária. Um livro de trato fácil, porquanto o seu autor, fazendo uma leitura psicanalítica da sociedade em que se insere, não interpõe recurso à terminologia estritamente da psicologia, livrando-se assim de todo aquele academicismo característico, por um bem maior, que visa a que todos compreendam da melhor maneira possível todas as ideias que ele objectiva formalmente nesse livro que tem o condão de ser apelativo e reformador.
*Professor de Literatura & Crítico literário